Eu tinha 20 anos de idade e estava numa calourada da UFMG, onde cursava Medicina. Durante a festa, uma colega do Diretório Acadêmico, do qual eu era diretor, se aproximou de mim e, do nada, me deu um beijo enlouquecedoramente intenso. Era linda, a moça, e eu tinha por ela uma queda que já durava alguns meses - uma paixonite que a timidez (há muito perdida) me impedia de manifestar. A princípio, empolgado, retribuí o beijo, mal acreditando no que estava acontecendo. E então percebi o gosto do álcool. Por alguns segundos, tentei ignorar, mas senti-me estranho, mal, diante do que ocorria. Por um lado, queria que os beijos continuassem; por outro, eu sabia que a garota costumava ser reservada, contida, e que aquela postura não refletia seu comportamento habitual. Sim, eu a queria - mas não daquela maneira, não sem ter certeza de que ela me queria de volta e com plena consciência disso. Assim, interrompi os beijos e expus minha preocupação sobre seu estado naquele momento - e falei que, no dia seguinte, caso ela ainda quisesse dar prosseguimento àquilo... bom, que eu estaria ali e feliz. Pois há pouco mais de um dia, a Globo, emissora de tevê aberta com maior audiência do país, exibiu imagens de uma garota praticamente inconsciente em função do álcool (fornecido pela própria empresa) enquanto esta tinha seu corpo explorado por um colega de cativeiro. As imagens se prolongaram por minutos intermináveis. Ninguém fez nada; nenhum produtor chamou o rapaz que a explorava; ninguém da ilha de corte interrompeu a transmissão. Mais tarde, quando internautas protestaram, o diretor do programa, o poderoso Boninho, afirmou categoricamente que "não houve estupro" (aparentemente, transferiu seu papel de "Deus" daquele microcosmos para o mundo real) e que quem insistia na afirmação estava sendo "racista", já que o rapaz envolvido é negro.
Mais tarde, ao comentar as imagens, o apresentador Pedro Bial disse apenas que "o amor é lindo". É uma história tão sórdida que chega a espantar que seja real. Não assisto ao Big Brother. Acompanhei a primeira edição e, tempos depois, vi aquela envolvendo Jean Wyllys. E então me dei conta de que não fazia sentido perder horas e horas acompanhando pela tevê o cotidiano de pessoas que eu não gostaria de conhecer fora dela. Dito isso, é impossível ignorar o programa: mesmo colocando filtros no Twitter para eliminar menções a ele, acabo aprendendo os nomes dos participantes e ficando a par dos acontecimentos diários - e, também neste sentido, o Big Brother faz jus à palavra "praga". Desta forma, já ouvi casos de homofobia, machismo e racismo perpetrados e divulgados pelo programa - mas nada que se comparasse ao que ocorreu agora. Exagero? Recapitulemos: a moça, mantida em cativeiro (mesmo que voluntário) pela emissora, embebedou-se com o álcool oferecido à vontade em uma festa, deitou-se ao lado de um homem que explorou seu corpo por um longo tempo diante das câmeras enquanto ela se encontrava obviamente desacordada e ninguém fez nada. Exibiram as imagens, tinham consciência do que ocorria, mas nada fizeram. Confrontados, defenderam o agressor, acusaram os acusadores de "racismo" e minimizaram o ocorrido. Certamente achando que ainda estamos na década de 90, Boninho obviamente acreditou que mataria o assunto na base do grito.
Mas não estamos mais na década de 90, Boninho. As redes sociais e a internet democratizaram o mundo de uma maneira que a Velha Mídia não consegue compreender. Antigamente, vocês abafariam o caso. Antigamente, o livro A Privataria Tucana seria morto no útero da editora. Mas no século 21 o caso não foi abafado e o livro é o mais lido do país. Não que tenhamos motivos para celebrar. Ainda há muitos que, possivelmente vítimas da síndrome de Estocolmo, insistem em defender a emissora e o programa, que deveria sair do ar imediatamente. Como é possível que vivamos num país que censura um abuso sexual fictício em Um Filme Sérvio e nada faz em relação a um incidente real veiculado ao vivo em rede nacional? Como racionalizar uma contradição dessas? Sim, o rapaz foi expulso do programa, mas o Big Brother, que promoveu, explorou, acompanhou, veiculou, lucrou e acobertou o crime, continua no ar. (E se eu fizesse parte da família da moça, estaria consultando advogados neste instante. Há uma fortuna em potencial apenas esperando ser transferida dos cofres da Globo para a conta de sua vítima.) Para piorar, de acordo com meu amigo Hélio Flores, que assiste ao Big Brother (ninguém é perfeito), a garota foi instruída a mentir para os colegas sobre o ocorrido. A cumplicidade da Globo, de Boninho e do programa neste incidente repugnante é difícil de negar. Um Filme Sérvio continua proibido no país. Aguardemos para ver se há um mínimo de coerência em nosso sistema legal.
Um comentário:
Blog abençoado
Portal Somos Gospel
www.somosgospel.com
Postar um comentário